sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

UM CONTO DE NATAL (Epitácio Macário)


Para o amigo Elias de França.

Enquanto fecho os olhos, revivo a cena de trinta e seis anos atrás. O lume hesitante da lamparina a querosene continua aceso na lembrança e ainda sinto o cheiro da neblina que acalmou a poeira do terreiro misturado com fumaça de pavio e alfazema queimada. Afora o grasnar da coruja de vôo rasante sobre o telhado e ecos de conversas vindas da estrada que ia dar na cidade, ouvia-se apenas a respiração ofegante, os silvos do ar inspirado a força, as frases reticentes, ditas pela metade...

A tarde tinha sido enevoada, de clima abafado e muitos carros na estrada, levantando poeira seca. O pai demorou a voltar da cacimba e quando apareceu trazia a cabaça vazia. Lembro de vê-lo por trás dos marmeleiros sentado numa pedra, como a fitar a copa das árvores, e atravessar a cancela do quintal em passos planejados. A filha mais velha tomou-lhe das mãos a cabaça, esticou a rede do lado da janela, na sala de jantar, colocou o travesseiro de bater algodão para formar um encosto, acomodou-o e começou a balançá-lo. O suor escorria pelo pescoço de pele curtida, tamanho era o esforço. 

A noite se anunciava, cobrindo com manto negro os restos de raios a oeste, quando a mãe dobrou o canto da cerca, exalando o cheiro de assados e chouriço que preparara na cozinha da casa da fazenda. Foi direto a ele, fez-lhe uma carícia no rosto e enxugou-lhe o suor; acendeu o carvão no fogareiro, trouxe-o para perto da rede, lançou sobre o braseiro um punhado de folhas de alfazema e começou a abanar a fumaça para debaixo da rede. Serviu-lhe uma porção feita à base de entrecasca de jatobá, jenipapo, aroeira, angico e minúsculos pedaços de cabacinha. Nenhuma palavra, só um gesto, um olhar firme e um clima de ternura e cumplicidade. Lembro como fosse hoje do sorriso que ele esboçou e da serenidade que se fez no seu semblante. Adormeceu.

Um mexido de feijão com arroz, cuscuz e torresmos, acompanhado de carne de porco assada com sobremesa de coalhada adoçada com raspa de rapadura, ficou apenas na fantasia que fora sendo desfeita enquanto a noite avançava. Nada mais que uma panela de xerém ardia na fornalha e mesmo o café de boca de noite não exalava mais cheiro: ora, ele fora preparado com a borra do pó da manhã! Os ovos, duas cestas cheias, e dois capões cevados tinham sido levados para a cidade. O apurado deveria ser investido na compra de quatro pares de chinelos, um quarto de café, dois litros de querosene e pães da padaria.

Minha rede estendia-se bem no meio da porta do quarto contíguo a sala de jantar. De lá, acompanhei e compartilhei a aflição da nova crise por volta das vinte e três horas. Ele ergueu-se de supetão, agarrou-se aos portais da janela buscando a brisa que corria suave lá fora. Os pulmões contraíam-se forte em ritmo acelerado e seu rosto foi ganhando uma cor vermelha, depois roxa... “Senhor, tende piedade dele!” suplicou a mãe e, num misto de dor e ternura, continuou: “não se entregue, meu velho; eu estou aqui; seus filhos estão aqui!...”. Novamente o cheiro de alfazema, incensos e ervas diversas.

Na pequena mesa de pau d’arco, lavrada a enxó e formão, havia um velho rádio marca Semp que recepcionava sinal transmitido em ondas longas de alhures.. Impossível esquecer o vai e vem das ondas, os assobios e chiados das quedas de freqüência e o jingle repetido de dez em dez minutos: “Sociedade... Salvador Bahia”. Quando a missa começou, ouviu-se um concerto que misturava o dobrado dos sinos com as dezenas de vozes do coral e um sublime som de piano que pairava como uma cortina luminosa por trás de todos os ecos.

Ali, na pequena casa de beira de estrada, a angústia resignada da mãe coragem contrastava com o desespero de duas das filhas que, no terreiro, soluçavam lágrimas de ressentimento: “Deus, por que nos desprezastes!”. Outros transitavam entre a sala e o quarto, em voz de pensamento, como que aguardando alguma coisa que já não sabiam o que era. 

Fingi para mim mesmo que dormira, fechei os olhos, procurei subtrair-me da situação, divaguei em pensamentos... Os ruídos do instante foram se distanciando, enfraquecendo, até sumirem, como as ondas do rádio. Mesmo o primeiro cantar do galo desmanchou-se no ar antes que chegasse aos meus ouvidos. Foi então que vi o pai erguer-se revigorado, arrastar seus velhos chinelos de sola crua até a alcova, pegar o violão, chamar todos para o terreiro e, do lado de sua amada, cantarolar madrugada adentro...

O sol principiava a romper a placenta da noite, quando ouvi sussurros da conversa de todas as madrugadas, alguns sorrisos soltos, vindos do quarto da mãe. Os dois desenhavam em cochichos o futuro. O rádio, agora sintonizado na Globo do Rio de Janeiro, tocava uma canção de Jackson do Padeiro. Demorei a abrir os olhos para não perder a paz do momento, até que o avistei, ereto como sempre, indo ao terreiro pegar gravetos para a mãe acender o fogo e fazer o café trazido da cidade pelos irmãos mais velhos. A crise de asma havia passado e ele assobiava docemente: “noite feliz... noite feliz...”. Debaixo da rede havia um embrulho com pão da padaria e um par de chinelas japonesas.

Era natal de 1973, numa casinha de beira de estrada, na localidade de Riacho do Gado, no município de Tamboril/CE.



Esse texto não é de minha autoria, foi escrito por um grande amigo, Epitácio Macário, o melhor texto de natal que eu já li.

Um comentário:

  1. E como fosse hoje, sinto os cheiros daquela noite e a aflição agora mais branda...

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