sábado, 4 de dezembro de 2010

O Vagão Anil




O barulho ensurdecedor, a pressa dos passantes e o desconforto tão peculiar não me faziam mal, acostumei-me ao protocolo cotidiano nestes anos vividos em demasia. Além disso, entrar naquele lugar era tão prosaico a mim que nada mais me fazia reclamar, embora nunca tenha deixado à mania do estranhamento e da observação constante.. 

A luz, já azulada do fim de tarde, começava a adentrar pelos orifícios das janelas mal fechadas e carcomidas, me fazia transcender a uma viagem muito maior que o pífio traslado que eu conhecia como palma de minha mão. Era notório que eu havia mudado muito e não poderia deixar de ser assim. Não pensava mais como outrora em que os sonhos comuns deixavam os apetrechos das miragens fortuitas aflorarem nas profundezas de minhas idiossincrasias me fazendo não conseguir perceber que as coisas poderiam ser muito mais que simples coisas. 

No entanto, não adiantava também me enganar em tamanho volume. A mudança nem sempre percorre uma linha ascendente, nem os anos de experiência podem fechar as cortinas do espetáculo da vida. As dores, os temores e as limitações teimavam em aparecer. A trivialidade não fazia parte dos atos que antes chegavam a julgarem-se invisíveis ou inexistentes. Num instante, pude perceber que era tão velho quanto aquele trem. 

Percebi também a razão de meu senso de observação ter aguçado em fórmula inversamente proporcional às moléstias, não por capricho, milagre ou prudência. O ocorrido se explicava pelo simples fato de que o meu descrédito com o gênero humano queria me afogar, me fazer um ser cada vez mais encanecido, ranzinza e desatento. Era uma luta constante e eu precisava sempre captar novos subterfúgios para munir-me contra esse que era o pior dos males.

Sentei-me como de praxe. As mãos trêmulas tentavam segurar firme no corrimão lateral, ao passo que pude observá-la novamente parada, hipnotizada por seu livro. Não era a primeira vez que a via ali, lutando contra o balé dos trilhos, devorando seu romance, cheia de fome e fervor. 

Era só uma mocinha lendo uma antiga estória policial, mas seus olhos me deslumbraram de forma a saltar em mim um regozijo das memórias de semelhantes viagens que também fiz da mesma forma, com o mesmo ímpeto. Comecei a divagar que talvez esses olhos fossem mais um desses elementos que recarregavam a poesia bélica rumo à batalha em prol da inspiração no coração de um velho como eu. 

E era assim que funcionava: eu sugava distintos elementos que estimava jubilares, externos a mim. Percebia as virtudes insistindo em se propagar, tímidas, sorrateiras, com seus instintos de sobrevivência afiados, se escondendo e se espalhando em diversos lugares, em diferentes pessoas, sob pena do açodamento, da falta de zelo, da mediocridade hegemônica da contemporaneidade lhe sufocarem. Era necessário garimpar.

E ali estava uma menina pequena, magra e de rosto bonito, só mais uma adolescente no meio da caravana, mas com uma forma de ler que me chamara atenção. Cuidadosa, com suas frágeis mãos segurando o livro firmemente, protegendo-o como a um filhote e passando as páginas com rapidez, como se na folha seguinte pudesse encontrar uma refeição majestosa para sua sede de espírito. Nada atrapalhava aquela cerimônia.

Ela nunca notara minha vigilância contemplativa ao seu ritual litúrgico. Muito provavelmente por não haver razão para se atentar ao seu redor que devia ser muito mais desinteressante que as estórias em que mergulhava em muitos fins de tardes de sua volta para casa, após enfadonhas aulas de matemática, química ou outras disciplinas que apenas lhe serviam como plataformas de potencialidade para sua imaginação fértil, naqueles períodos de falatório interminável dos professores prolixos de pouca didática.

Eu nada sabia dela e de fato não era ela quem eu admirava. Fascinava-me seus aspectos, feições, trejeitos. Sua energia transcendente traduzida em suas pálpebras paralisadas, em sua pirueta desprovida de pudor em mais uma fábula qualquer e no elevar de sua alma perante a grandeza da arte. Ritual mágico que só aqueles pobres diabos do vagão não poderiam notar, pois além de passageiros do trem, eram meros passageiros da vida.

De repente, uma gargalhada. O riso solto e rápido seguido por um suspiro inquietou-me ainda mais. Seus olhos brilhavam, não me contive. Subitamente perguntei se ela ria do livro, vejam que pergunta boba! Ela levantou a cabeça e respondeu de prontidão positivamente. A firmeza no olhar e a naturalidade da resposta me deram a certeza que tinha acertado nas proposições anteriores.

O mundo fala, discursa, cala, não dialoga. Não é mais comum conversarmos sem propósito, ainda mais com idosos desconhecidos. As palavras proferidas sem estranheza surpreenderam-me ao passo que abriram o canal para uma breve troca de frases sobre literatura, sobre a vida, sobre o trem.

Aquela menina tinha algo de filha, de mãe, de irmã, de amiga que eu nunca tive. Tinha uma força em sua voz que contagiava diametralmente. Era de fato sublime aquele encontro mais que intelectual, pujante. Não que eu não tivesse o devido apreço pelos meus pares, mas os traços sanguíneos são imperativos nessa questão, não nos dão direito à escolha. Neste caso, o processo se dava por potência e ato.

Enquanto ela falava, eu me perguntava silenciosamente se os familiares daquela mocinha sabiam da joia rara que tinham em seu convívio, me perguntava como seria sua vida, quais seriam os seus valores, quais seriam os seus destinos.

Não era minha tarefa descobrir, deixo as investigações para os personagens dos folhetins e, afinal, eu precisava apenas conviver um pouco mais com aquela áurea. Um pouco mais apenas, pois o trem parou. Despedimo-nos e naquele momento seguimos nossos dramas cotidianos como indivíduos que somos, singulares, únicos, buscando sempre algo para transcender, nos tornar coletivos, humanos.

Nos dias subsequentes, enquanto enfrentava a saga naquele mesmo vagão, com o mesmo rito, com as mesmas inquietações, fraquezas, fortalezas, munia-me de precauções especiais para que pudesse retribuir de alguma forma o bem que aquela jovem me proporcionara.

Os dias se passaram até que o reencontro, talvez inevitável, aconteceu, agora, ela que me viu. Um cumprimento fraterno, um sorriso breve e de novo um diálogo enriquecedor e inexplicávelmente desprovido de qualquer noção de temporalidade. Quantos minutos, horas, anos durou aquilo? Não Sei.

 Presenteei-a com um livro, a fiz prometer que leria (como se isso fosse preciso) e ficamos intermináveis e virtuosos minutos nos tornando humanos até que novamente, o barulho das máquinas diminuiu. Percebi a hora de mais uma despedida, esta, com um abraço de gratidão que nutriu minha alma, sustentou meu ser, e certificou ao universo que as chamas daqueles que contemplam, vislumbram e ousam sonhar ainda estavam aqui e principalmente por aí, caminhando, percorrendo as selvas de pedra, o cotidiano assassino, a poluição imagética de nosso concreto urbano tão fragmentado. As chamas permaneceriam acesas, vivas e sobrevivendo naquele púbere ser humano.

Nunca mais nos vimos, Não mais pude embarcar naquele vagão devido aos fantasmas da velhice que, paulatinamente, se materializavam sob nomenclaturas de novas enfermidades. No entanto, aquele abraço não só tornou os raios anis oriundo do pôr-do-sol muito  sobre as janelas do vagão mais poéticos, como também preencheu uma lacuna de fé na vida desse pobre velho que busca sugar do mundo o que há de mais belo para sobreviver: a simplicidade, a firmeza, o benefício da dúvida e a beleza da poesia, somente encontrada no âmago de um verdadeiro coração juvenil, um relicário.

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