sábado, 14 de junho de 2014

A Farra do Menino Mimado em 12 de Junho


É dia de alegria, mas o menino mimado quer mostrar que é rebelde. Mesmo todo engomadinho, certinho, com seu liso cabelo partido para o lado direito, o guri é sapeca, gosta  de ficar  junto com seus coleguinhas e pregar peças naqueles que estão ao redor. A insatisfação é sua brincadeira preferida e mesmo sendo costumeiramente cordial com seus coleguinhas, ele também é bastante boquirroto quando quer.  A ocasião parece especial para quem olha de longe, mas o menino vive mais um dia normal em sua vida, ele tem tudo o que quer nas mãos, embora viva eternamente insatisfeito.

Hoje é dia de festa, evento certeiro para as peripécias do menino, mas como a parte menos abastada da família não estará lá - foco principal de suas galhofas - o jeito é ter como alvo quem melhor lembra aquele pessoal que ele detesta, por acaso, a pessoa é justamente a sua tiazona que o mima sem parar e sempre esquece do resto da família. Esse comportamento, obviamente, só reforça a má educação do menino, mas a tiazona é boa e só quer agradar. A tiazona está sempre solícita, sorridente, tentando deixar o menininho feliz. Ela nem queria chatear os outros membros da família, mas "sabe como é, né, o menino quis, esse pessoal também é muito impaciente, não entende que ele é diferenciado, precisa de mais atenção".

O menino então chega à festinha que a tiazona ajudou a fazer, come o lanchinho que ela cozinhou para ele ficar feliz e então reclama. Ele adora reclamar. Enquanto isso, a tiazona faz de tudo pra agradar o menino, esse parente distante, riquinho e emburrado que quer ser rebelde. Do lado de fora, parte do resto da família está realmente “p da vida” com a falta de zelo que a tiazona não concentra nas coisas mais importantes para todo mundo dali, pois ela gastou muito dinheiro e trabalho com uma festinha boba só para tentar agradar esse menino mimado e mal educado e só as migalhas e os restos sobraram para toda a família. Essa festinha é de fato polêmica, gerou discórdia, mas a Tiazona não gosta que falem do menino, por isso deixou toda a parte chateada da família de fora da comemoração para não gerar mais problema.

A festinha está mais ou menos pronta. Com muita dificuldade, sob gritos do resto da família, mas sem nunca desistir, a tiazona faz a decoração, os brinquedos, o lanchinho como pode e não deixa ninguém chegar perto antes do menino, afinal, ele é a razão de tudo. Ainda sim, o menino rebelde, comendo, se divertindo e pulando xinga a tiazona! Ele está com raiva e diz que a festa está péssima, brada, chora e esperneia enquanto brinca no parquinho.

O menino xinga, mas não vai embora da festa, ele fala que os balões são feios, reclama que a comida está ruim, mesmo se empanturrando com a mesma. E exatamente na hora do discurso, naquele momento que a tiazona deixa todo o resto da família trancada do lado de fora só para o menino rebelde se divertir com os amiguinhos,  ele vai lá e manda um sonoro “vai tomar no cu” na cara da tiazona. Ela fica meio envergonhada, pensa: "que coisa mais feia, menino", porém, o mal educado não se importa, pois ele quer mostrar para os amiguinhos que pode humilhar quem lhe serve e que é um garoto reclamão, exigente e capaz de ser ainda mais descontente do que o resto da família que está chateada do lado de fora. O menino é mimado, quer mostrar que é rebelde e faz isso na frente dos coleguinhas, sob constrangimento e posterior sorriso de sua bondosa tiazona. Sim, ela sorri. A tiazona é legal, pelo menos para o menino.

E assim, o menino e a tiazona vivem e continuarão vivendo sua relação quase promíscua, envolta de tapas, beijos, xingamentos, favores, subserviência e falta de agradecimento. O menino mimado gosta mesmo é de xingar e a tiazona parece gostar de ser xingada. “Oh menino sapeca, parece que nunca está satisfeito, quer um cafuné?”.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Sexta-feira 13
O azar arrasa a razão
Sorte da superstição

terça-feira, 10 de junho de 2014

Veneno

Se as cobras tivessem pernas elas andariam lado-a-lado contigo, fingiriam semelhante a você, dariam um passo para trás e então quando percebessem sua distração  poderiam passar uma rasteira pelas suas costas sem nenhum problema. Se elas tivessem mãos poderiam te cumprimentar, fingir civilidade, amizade, solidariedade e depois fazer gestos obscenos com os dedos quando você estivesse longe. Ela poderiam também te enforcar num abraço, é da natureza de algumas. Se as cobras falassem não precisariam do veneno, suas palavras elogiosas em sua presença se transformariam em fofocas, melindres e polêmicas rasas quando seus ouvidos não pudessem notar. Uma cobra falante com meia dúzia de meias verdades para uma alma meia-boca e a mediocridade reinaria.

Se uma cobra tivesse corpo de humano, face de humano e trejeito de humano ela iria dissimular por meio de bajulações, manipular pelo terrorismo, enganar pelo pavor, dissuadir com abraços e afagos, desenvolver meios de jogar com as pessoas até ficarem umas contra as outras, se alimentando de boatos, se fartando com ambientes pesados e se viciando em manias de perseguição.

Se algumas cobras fossem humanas elas poderiam conviver contigo, sair para beber uma cerveja, entrar em suas redes sociais na internet, convidar para projetos futuros, perguntar sobre seus planos, dizer que torce por ti e ainda assim passariam quase ilesas ante a mediocridade do rastejar que seus passos esconderiam, obscurecendo as intempéries invisíveis que suas mãos lisas temperariam e o veneno simbólico que a língua ferina faria chover. A dádiva da cobra é perceber todos à sua altura ali no chão.

Se as cobras fossem como os humanos a covardia seria ainda maior, no entanto, a astucia seria prejudicada pelo ar de superioridade, já que sempre iriam achar que ninguém seria inteligente o suficiente para notar os jogos, os dramas, as farsas tão perenes. Se as cobras fossem como seres humanos o seu verdadeiro veneno seria jorrado pela intriga, pelo rancor, pela inveja, com amargura, com desrespeito, com gosto de derrota e solidão.

Se alguns humanos fossem cobras o mundo seria melhor.

A gratidão e o orgulho de ser professor

A gratidão e o orgulho de ser professor

Quando decidi ser professor sempre pensei que não queria ser nem o professor bonzinho, nem o professor temido pelos alunos. Esses dois lados estão marcando a aparência de uma mesma moeda que ferra o processo educativo num modo enviesado, superficial e arcaico.

A busca por agradar a qualquer custo, pelo caminho aparentemente mais fácil, ou melhor, que tenha menos esforço, fazendo assim um pacto de mediocridade em sala de aula não faz parte daquilo que acredito. Por outro lado, também não acredito num processo pelo autoritarismo, pelo medo, pelo pedantismo, num processo reprodutivo dos quarteis e suas fileiras, da confusão entre disciplina e ordem repressora, da vivência educacional mais conservadora e ignorante.

Quando um grupo de estudantes na semana passada resolveu espalhar cartazes pela internet e por todo o campus da universidade que trabalho pedindo para que eu e minha companheira ficássemos aqui, eu tive a certeza de que, embora ainda seja um jovem aprendiz nessa carreira, eu estou caminhando dentro da coerência, da ética e da convicção da busca por outro modelo no processo educativo.

Quando alunas que foram reprovadas nas disciplinas pedem para você ficar, há algo maior do que mero carisma, há a materialização de um trabalho que vai para além do aparente e isso ninguém pode negar. Por outro lado, quando alunas e alunos dizem que você foi um dos três melhores professores que tiveram na vida admito que fico feliz, mas tudo isso não me envaidece, posto que não estou numa disputa de ego, não participo de uma gincana infantil para saber quem e porque um ou outro é mais querido, nem faço parte da dissimulação de parte da comunidade acadêmica que constrói os púlpitos das cátedras, reproduzindo a moeda egoísta da vaidade pelos quatro cantos do mundo.

Mas sim, eu  fico orgulhoso do meu trabalho, fico orgulhoso dessa profissão e fico orgulhoso por sempre buscar tratar xs alunxs com respeito, sem subestimar a inteligência de ninguém, cobrando resultados e, acima de tudo, buscando construir um processo pedagógico onde elxs enxerguem sentido naquele lugar, naqueles conteúdos e, sobretudo, que enxerguem coerência entre o que eu defendo e o que eu faço.

A minha decisão de tornar-se professor não veio por súbito, foi construída ao longo do tempo e com a convivência com mestres que me inspiraram. Ao longo dos anos tive professores e professoras que com sua forma de apresentar o conteúdo superavam esse ato. Esses conseguiam construir algo novo ali, dialogavam, vivenciavam para além da lógica da educação bancária. Foram esses xs professores que me encantaram. Elxs que me faziam ter vontade de estudar mesmo quando que eu não tinha tanta identificação com o conteúdo ou quando o cansaço (ou a preguiça) limitavam as densas e intermináveis leituras. Essxs professores tinham uma capacidade de síntese impressionante e ao mesmo tempo podiam concatenar assuntos díspares e mostrar as mediações que eu ainda não tinha maturidade teórica para perceber, tudo isso me deixava admirado.

Esse encantamento foi primordial, algo que procurei apreender e aguçar, algo que depois eu iria perceber para além do trivial na metodologia do ensino, nos estudos sobre didática, no aprofundamento da dimensão pedagógica, mas também no exercício cotidiano de construção de um espaço educacional diferente do hegemônico. Não alijar a tessitura entre forma e conteúdo, entre  o arcabouço teórico, o sentido ético-político e a dimensão de que além de meras palavras ao vento é necessário agir de modo autêntico. Tudo isso foi modelar e tomou status de alicerce profissional para mim.

Do outro lado, também tive professorxs que me ensinaram o que eu não queria ser. Professorxs que faziam com que eu tivesse vontade de me afastar do conteúdo, que achavam que enfiando goela abaixo terrorismo, autoritarismo, palavras difíceis e seus discursos pedantes numa eloquência ignorante e enviesada poderiam conquistar um suposto respeito, no auge da falta de autoconfiança. Vi muita gente culpar a teoria pela falta de coerência dos interlocutores, acompanhei sujeitos com ojeriza dos espaços acadêmicos pelo que os agentes faziam ao expor colegas, estudantes e demais sujeitos a experiências constrangedoras.

Por isso, além do esforço teórico peculiar ao longo desses anos, além da mera experiência acadêmica em si, a compreensão de que o processo educativo não é um show de entretenimento, mas também não é um campo de concentração vem me formando professor. Como um jovem profissional, mas com bastante experiência nesses férteis e difíceis últimos anos, fico extremamente feliz que um grupo de alunxs, servidores técnicos e colegas professores reconheçam esse esforço. Fico extremamente feliz de ver estudantes ou pedindo para que fiquemos, ou simplesmente reconhecendo aquilo que foi trabalhado em sala de aula, desde aquelxs alunxs que tiraram notas altas até xs que estiveram com dificuldades e souberam perceber suas deficiências e o sentido para além do insucesso imediato.

As ponderações de minha decisão futura e sobre o caráter sentimental do movimento eu expus nos comentários que fiz na mesma hora que vi o início da campanha. Falei dos meus motivos e motivações, falei de que aquela iniciativa deveria ser politizada e voltada para outros atores, falei isso antes de qualquer outra pessoa e colocarei abaixo esse texto de semana passada. No entanto, compreendo e não deslegitimo o ato de carinho que foi construído e expressado ali. Valorizo sim a atitude de reconhecimento que foi ratificada, também acho que ninguém tem o direito de deslegitimar isso, buscar satisfações ou qualquer coisa do gênero.

O ato sentimental, o carinho, o respeito também faz parte da seara do que acredito e sim, agradeço àquelxs que se dedicaram nesse ato, guardarei para sempre esse momento e mais uma vez tive a oportunidade de aprender com meus alunxs.  Não se trata de demagogia, trata-se de convicção. De buscar sempre dialogar e não vomitar currículo, conteúdo, autoridade ou minha visão.

 Não estou aqui com essas palavras e nem em sala de aula "jogando pra torcida", fazendo proselitismo ou qualquer elemento similar. Minhas palavras, seja aqui ou acolá, não são nem para agradar todo mundo, nem para não agradar ninguém. Falo pelas minhas experiências, leituras e convicções. Minhas palavras e atitudes procuram sentido e direção político-pedagógicas claras e que a dimensão ética é tomada não como mera abstração, mas em seu sentido concreto, vivo, suspendendo essas esparrelas cotidianas e buscando construir algo diferente, primando pela qualidade, pela humanização, pela coerência, errando em muitos momentos, mas sempre querendo acertar e tendo a humildade de rever, refazer, reconstruir. Sei que não estou só, sei que não estarei e sei que quem acreditar nisso - apesar dos pesares - nunca estará.

Feliz, agradeço novamente a vocês por me ensinarem gratidão, agradeço aos meus bons professores e professoras por me inspirarem ao longo do tempo. Sei que tenho muito que aprender, sei que estou longe de ser o professor que quero ser, mas sei que estou ainda mais distante de ser o professor que eu não quero ser. Ainda bem!

Reafirmo o desejo de que possamos todxs aprendermos com os acontecimentos.  Que os pedidos e as buscas sejam maiores, que as discussões seja por projetos, sobre as práticas e que passemos a discutir menos as pessoas. Mas que também não eliminemos a ternura, o sentimento de bondade e a gratidão no ambiente educacional que em alguns níveis fica tão envolto de disputismos, melindres e vaidades.Como é bom encontrar companheirxs, sejam alunos, professores, técnicos ou qualquer um que construa outra lógica!

Valeu, pessoal! Reverbero o que escrevi semana passada:

""""""""""""""""""""A luta é outra! hehehe

Querid@s alun@s, 
Meu povo, oh a chantagem, a coisa é mais complexa, ehehe
O reconhecimento de vocês é o melhor prêmio que um docente pode receber. Para quem acredita na construção de uma universidade popular, socialmente referenciada na classe trabalhadora e pedagogicamente séria, perceber que o trabalho - ainda que dentro de um processo tão precarizado – pode gerar um ambiente de aprendizado e de edificação de uma parceria fraterna e respeitosa entre nós e vocês é maravilhoso. Mas a vida nos coloca dificuldades, nos oferece alternativas e nos desafia a construir nossas possibilidades dentro do que não planejamos.

Agradeço demais o carinho com que nos trataram, o esforço nas disciplinas e esse gesto de agora. No entanto, o leque de possibilidades que se abriram nas últimas semanas não surgiram do nada. Quando viemos para cá não foi pensando em ir embora, mas por uma série de fatores e sobretudo, pela incerteza na condição de substituto me fez decidir fazer esses concursos que surgiram para buscar uma condição melhor de trabalho. Pois bem, nesse meio tempo muita coisa aconteceu, boas e ruins, muitas que não convém explicitar, mas a morosidade para que os processos acontecessem aqui , junto com um certo desgaste pessoal, além da aprovação nos concursos nos fez pensar e repensar. A decisão nunca é fácil, mas é tomada de modo responsável e nunca de modo meramente instantâneo, há razões para tudo.

Vejam só, nós iremos, não sabemos quando, essa é uma decisão tomada por uma série de coisas pessoais e profissionais. Até lá, estaremos com vocês e com nossos colegas com o mesmo profissionalismo de sempre, com a mesma alegria e respeito em sala de aula. O que precisa ficar explicito é que a responsabilidade da falta de professores não é nossa, nem de nossos colegas. É preciso que tod@s possamos refletir sobre tudo que ocorreu e aprendemos com esse processo. Os cartazes precisavam e ainda precisam se voltarem de forma politicamente clara e por um projeto de universidade e não pela decisão de alguns professores que, repito, não foi em vão.

Agradeço o carinho e mobilização, vejo como uma homenagem. Mas rogo que ela se volte para que quem administra essa universidade em seus diversos níveis e o governo federal, para que os pedidos não sejam mais pessoais e individuais, mas sim numa campanha e luta por uma universidade pública, gratuita, de qualidade, laica, para todas e todos, anti-homofóbica, anti-racista e popular. Para que alun@s tenham condições reais de estudar, para que professores e técnicos tenham condições reais de trabalhar com qualidade e que ninguém mais precise, por ventura, pedir pessoalmente que ninguém não vá embora. Enfim, a campanha, embora carinhosa e que me encha de orgulho, deve ser direcionada para que os processos futuros sejam diferentes, o nosso é o nosso e ocorreu como ocorreu. E não cabe a nós agora a responsabilidade que era de outras.

No mais, só muita gratidão e a certeza de que onde estiver estaremos trocando saberes e construindo a formação profissional no rumo de nosso projeto ético-político, nos encontraremos nos congressos, nos espaços profissionais e demais esquinas da vida e vocês poderão até tirar uma foto mais bonitinha do que essa da gente com chapeuzinhos, hehehe .

Obrigado, levarei vocês no coração, até mais, revejam a campanha, construam muitas outras! Deixo uma reflexão mais que oportuna:

"Não podemos impedir que a burguesia e seus aliados expressem seus interesses no fazer diário da Universidade, mas temos o dever de apresentar ali os interesses dos trabalhadores. Devemos afirmar, parodiando Brecht, que ali onde a burguesia fale, os trabalhadores falarão, ali onde os exploradores afirmem seus interesses, os explorados gritarão seus direitos, ali onde os dominadores tentarem mascarar sua dominação sob o véu ideológico da universalidade, os dominados mostrarão as marcas e cicatrizes de sua exploração." Mauro Iasi""""

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Elogio da Ira

Toda vez que ela chega o meu espírito se acende, os sentidos aguçam, a coragem aparece e minha mente trabalha como nunca. Há quem diga que é o amor, há que fale que é a fé, outros, a convicção, mas em mim sempre foi a raiva o melhor combustível.

Amor, fé, convicção, tudo isso é fundamental. Mas a raiva é o tempero que compõe o sabor da batalha, a substância da indignação, o elemento que desenvolve em mim uma vontade essencial de superação. Não estou falando do ódio, daquilo que corrói a alma, de um sentimento irracional, cego e que apenas destrói. Estou falando daquilo que faz ranger os dentes, arregalar os olhos e romper  as barreiras, desafiar o status quo e provar que algo é possível. Falo de uma raiva produtiva que consome o corpo, faz os pés caminharem mais rápidos e as mãos trabalharem melhor.

Há amor dentro da raiva, há fé e convicção também. Amo a justiça, sinto raiva da desigualdade, tenho fé na vida e que a ética é o melhor caminho e raiva dos opressores e suas posturas desonestas, sou convicto de que só a luta muda vida e sinto raiva de todos os obstáculos que aparecem no percurso. A raiva é essencial, a cólera que transcende e sucumbe à covardia diante da tirania que nos ameaça, a ira que salta aos olhos diante do desejo de destruição que o outro destila, a atitude, o pensamento, uma sede inexorável de uma batalha justa e de uma glória necessária.

O ódio é maldição, o medo é veneno,  a convicção, uma arma. A raiva é produtiva. Sempre rendi com ela, sempre realizei mais e melhor. Ela é o combustível que aquece o meu sangue, catalisa minha criatividade e me faz vencer. Se meus desafetos soubessem o quanto eu produzo com raiva viveriam me fazendo cafuné.

terça-feira, 3 de junho de 2014

A Copa do Anticlímax - Relato de quem está longe



Eu sempre adorei futebol. Sempre consegui entendê-lo como complexo multiforme, como mercadoria, como instrumento ideológico, mas também como um esporte educativo, como entretenimento sadio, como possibilidade de contradição. O meu amor pela disputa nas quatro linhas, por assistir, por vibrar nas arquibancadas, pelo aspecto cultural daquela boba irracionalidade premeditada nunca me deixou desmerecer as questões problemáticas que envolviam a relação "política e futebol". Sempre torci sabendo e criticando o que achei errado. Hoje não será possível.

Torcer, gostar de futebol nunca foi necessariamente sinônimo de despolitização ou condescendência com o status quo. No entanto, eu não estou falando exatamente de futebol, eu estou falando do megaevento Copa Do Mundo, dessa aberração sediada no Brasil. Eu estou falando da decisão de reproduzir ou de criticar e combater aquilo que vem sendo edificado  com mãos de ferro pela FIFA e pelo Estado em cima da população brasileira. Desculpem-me mas não tem como se ligar nos jogos e simplesmente esquecer o que há por trás, pois não se trata apenas de uma questão política no sentido estrito, há sangue, suor e sonhos derramados por brasileiros e brasileiras para que o lucro levante a taça nesse torneio.

Entendendo todas as contradições, há quatro anos eu estaria animado, hoje, tanto distante dos jogos, como há milhares de quilômetros de todas as legítimas e corajosas manifestações, vejo essa Copa como anticlímax voraz para o meu espírito. Não sei o que fazer. Talvez eu tome uma cerveja, talvez eu faça uma pipoca, talvez eu assista algum jogo na casa de amigos, talvez eu comente algo sobre futebol. Talvez eu até precise enganar minha frustração. Estou longe de meus companheiros de rua, será tudo superficial para mim. O meu coração brasileiro quer que eu tenha orgulho do povo que luta e não se rende mais do que daqueles que exacerbam nacionalismo, vomitam ufanismo, distorcem as bandeiras de luta e são incapazes de entender uma simples provocação como a expressão "não vai ter copa".


Na real, embora eu adorasse futebol, a Copa do Mundo sempre foi para mim tão importante quanto distante. Cresci acompanhando, torcendo e adorando o evento, mas ele sempre foi um evento distante. A Copa acontecia em países longínquos e demorava quatro anos para aquele movimento todo no país acontecer de novo. Quando sonhava ser jornalista esportivo sempre imaginava trabalhando numa cobertura de uma Copa aqui no Brasil, onde o evento seria finalmente próximo de mim e de todos. Do sonho ao anticlímax.

O tempo passou, não virei um jornalista e desde que o Brasil se candidatou a sediar o megaevento eu bem sabia que ele não me seria próximo. Os preços dos ingressos - imaginava - já  iriam me fazer acompanhar pela televisão assim como em qualquer outra edição . Mas não era só isso, a coisa já se anunciava como tragédia. Os primeiros atos, o planejamento, os conchavos políticos, tudo aquilo já demonstrava onde iria descambar. Não seria apenas o lúdico jogo antropológico nosso de vibrarmos e chorarmos pelos dramas de mentira, esquecendo um pouco nossos dramas de verdade. Não seria apenas a brincadeira, a festa, o carnaval para reafirmarmos nossa identidade, para encontrarmos os amigos, para vivermos um pouco mais feliz. Foi realmente outra coisa.

É aí que o jogo começou: de um lado a destruição e do outro a resistência popular. E jogávamos em casa, mas o árbitro sempre esteve com o adversário. As ruas foram tomadas por quem defendia o direito, a soberania, o respeito e a dignidade contra o lucro desmedido e o rolo compressor da repressão. Dias de dores, dias de sorrisos, dias de resistência. Não há como esquecer desses anos de mobilização, muito menos o estopim em Junho de 2013.

Um ano depois, minha situação é difícil. Hoje me encontro distante em vários sentidos. Há quilômetros e quilômetros de qualquer manifestação contra a copa, fico eu aqui constrangido, sem saber bem o que são essas bandeiras verdes e amarelas nos carros. Ligo a tv, vejo o futebol, mas o barulho das bombas em minha cabeça superam qualquer vinhetinha, apitos e gritinhos da torcida.

A contradição, as mediações, o entendimento de que futebol não é mera alienação ideológica e que não é preciso desgostar do esporte para ser crítico, tudo isso não serve para as questões que se apresentaram na construção desse megaevento. A questão não é somente ideológica, é material. Pessoas perderam casas, foram e serão presas arbitrariamente, trabalhadores morreram.

O futebol? Nossas praças esportivas foram colocadas nas mãos de consócios internacionais e nossos clubes agora serão reféns de fato e de direito das arenas sem alma, mas com belos banheiros de mármore. Para a torcida restou a caricatura, o manual, a elitização, a classe média vislumbrada brincando de glamour enquanto cospe ufanismo. Já bastava isso para desanimar. Mas relembro as bombas, os tiros, as demolições, o dinheiro público pelo ralo, a violência policial, a condescendência da mídia, o luto das famílias dos operários, é demais. A desculpa de que se deve protestar nas urnas, de que uma coisa é a paixão pelo futebol e outra a indignação, nada disso é suficiente dessa vez. Aliás, você que acha que se deve protestar nas urnas, o quanto revolucionário você foi nas últimas eleições?

Enfim, há muitos quilômetros das manifestações resta-me pouca coisa. A internet, a observação de longe e uma torcida pelos que estarão no campo... de batalha. É isso que o Estado, a FIFA e as elites transformaram o país. Uma batalha marginal daqueles que não foram convidados para festa. Uma repetição em farsa e fascista do construto nacionalista em torno da Seleção da CBF.

Fico aqui, longe, apenas com as lembranças, os desejos, a participação virtual. Ligo a tv, vejo o futebol, mas apenas constrangimento me cabe. Talvez uma cerveja alivie a angustia individual, talvez um sorriso amarelo seja necessário nos dias dos jogos para sobreviver à euforia de plástico que arrodeia o cotidiano nesses dias, mas como não ficar próximo aos companheiros que estarão sangrando pela verdade? Enquanto outros gritarão gol, eu não saberei bem o que fazer. Viverei a copa como um véu de ficção que cobre a real partida que ocorre no país.

Pode até ter futebol, gol e essas coisas todas, mas a Copa para mim só chegou por meio da violência, da destruição, do progresso para as elites. Não vai ter copa, já não teve copa. Aquele evento que me fazia vibrar quando criança não era isso, ao menos eu não sabia que era. Agora, distante quilômetros e quilômetros dos estádios só resta angústia, indignação e orgulho do povo, daquele povo que estará do lado de fora, nas ruas, lá onde eu queria está. Pra frente, Brasil!