quinta-feira, 5 de março de 2015

Sobre o reconhecimento do trabalho docente (ou Para além do "O que é um professor universitário?")


A difícil conjuntura que vivemos faz com que caiamos em diversas armadilhas  para lidarmos com os desafios de nossa vida cotidiana. No espaço das universidades, o profundo desrespeito dos governos brasileiros com a categoria docente coloca em impasses que enfrentamos de formas bastante distintas. Diante do descaso e do desrespeito há quem busque saídas individuais, alguns clamam resiliência, outros, resignação. Suspeito que precisamos ir mais além.

Esses dias li um texto* muito interessante sobre o que de fato é/seria/deveria ser um professor universitário. O texto do professor Marco de Melo, da UFMG, é um bom ponto de partida e demonstra uma série de elementos do quanto o trabalho docente e a universidade sofrem com a desvalorização e desconhecimento de sua importância no Brasil. O autor derrama uma gama de informações e argumentos da especificidade da docência nas universidades internacionais, trazendo aspectos relevantes sobre a importância da pesquisa, o respeito ao esforço intelectual inerente a essa atividade e o vácuo cada vez maior nosso país.

O texto em questão releva elementos que de fato devem nos preocupar, problemas que nós docentes passamos e que precisamos fazer o enfrentamento. Mas ao lê-lo sinto a necessidade de provocar e falar sobre outros incômodos que envolvem esse “título de professor universitário” e aquilo que muitos almejam dele. Digo isso, pois acredito que exista muito mais para ser revelado a fim de compreender a essência da problemática que aflige o trabalho docente e a universidade brasileira.

O texto expõe importantes considerações sobre os desafios que a lógica enviesada e superficial nos coloca cotidianamente nos espaços de trabalho cada vez mais precarizados, aprofundando a banalização da atividade docente, com a reprodução de uma cultura requentada de subestimação da pesquisa, do ensino e da extensão. Essas são visões historicamente construídas no desrespeito aos profissionais e demais sujeitos que fazem parte do processo educativo, mas também na ignorância funcional sobre o caráter da universidade.

Tudo isso é somado ao presente e oportuno caráter mercadológico e tecnicista da educação. O trato do docente como mero instrumento da mercadoria educação, o aulismo como modus operanti, a pesquisa sob os ditames das “parcerias” com o mercado, a precarização da carreira e das condições de trabalho e a multiplicação de uma concepção de formação profissional distante da formação humana fazem parte da retroalimentação desse triste e desgastante jogo de desvalorização.

No entanto, é preciso ainda considerar outros elementos. Do lado cá há também muito a se avançar em concepções e práticas mais profundas. Ainda que concorde com os problemas colocados sobre como o professor universitário é visto na sociedade brasileira, não posso me furtar de refletir também sobre esse “título” de professor universitário almejado por muitos de nós dessa categoria. Pois dentro dessa cultura que desvaloriza a atividade docente, o outro lado da mesma moeda revela uma histórica reprodução do elitismo, do pedantismo e dos jogos de poder que o saber universitário permite em seus espaços.

O bichinho da vaidade, o espectro da distância teoria-prática, o abismo entre forma e conteúdo e as vendas nos olhos frente aos interesses de classe rondam os gabinetes e as salas de aula de nossas cátedras e desafiam cotidianamente a materialização de uma universidade verdadeiramente popular, pública, estatal, gratuita, democrática, contra a exploração e contra as opressões, ou seja, com a construção do conhecimento que mire a emancipação humana.
É inegável a dificuldade de nos reconhecermos dentro da gama de seres humanos que vendem sua força de trabalho, daqueles que sofrem com a precarização e a exploração e que, por isso, tanto nossa atividade profissional, como a urgente e necessária organização política deve ser fortalecida para desvendar os limites de onde trabalhamos e as possibilidades que devemos construir. Envoltos nos contos que as camadas médias da sociabilidade de classes nos permitem nos acolhemos no mito da temperança, da imparcialidade e do individualismo.

Há boa vontade, focos de resistência, coletivos organizados, iniciativas importantes e gente que compreende esses desafios. Mas há também muita contradição e incoerência no cotidiano de nossas batalhas, dificultando desde a aglutinação de aliados até mesmo a necessária referência que as/os discentes procuram nas brechas de um belo discurso do professor que, eventualmente, pode permanecer absolutamente descolado de suas atitudes dentro e fora da sala de aula.

O vácuo entre a mera abstração de um projeto profissional ou de elucubrações teóricas aliadas às ações que reivindicam o autoritarismo, a reprodução do poder pelos títulos acadêmicos, as pesquisas, ora descolocadas dos interesses concretos dos sujeitos, ora simplesmente apresentando e representando a superficialidade tecnicista hegemônica da avaliação da aparência, tudo isso reflete mais do que elementos isolados dos nossos dramas cotidianos.

Obviamente, nesse emaranhado de questões, os elementos subjetivos também se fazem presentes. As balizas que nos saltam aos olhos fazem com que muitos se peguem no pragmatismo, no preconceito intelectual e na frustração com sua prática profissional. Isso permite a multiplicação de sensações e análises que individualizam causas e consequências, seja na própria culpabilização, seja no dedo em riste para seus pares e/ou para as/os discentes.

As cisões encontradas em sala de aula diante dessa lógica historicamente reproduzida e consubstanciada com o desmantelamento da educação básica (parte desse mesmo processo), por vezes, são “enfrentadas” ou com voluntarismo condescendente, com o rebaixamento da qualidade, ou com o suposto outro polo de personalismo e culpabilização dos indivíduos por suas limitações. É aí teremos os docentes bonzinhos e os docentes tiranos como partes aparentes de uma diferença que só se estabelece na lamentável lógica de unidade.

Corremos atrás do próprio rabo, jogatinas políticas ou negação da política se estabelecem como únicas saídas: produtivismo ou desinteresse, pedantismo ou superficialidade, tecnicismo ou filosofismos, irresponsabilidade ou sacerdócio. Falsas polêmicas, falsas alternativas que se materializam em nossos espaços e escondem as verdadeiras disputas de projetos de universidade. 
Quando menos percebemos somos o professor-pesquisador-empreendedor que detesta a sala de aula e encontra seu escape nas parcerias com as empresas privadas; o professor “aulista” que tem a pesquisa e a extensão como obstáculos; o professor-autoridade que quer, como pressuposto, ser adorado pelos seus títulos e produções; o bem intencionado professor-tecnicista que acha que a universidade é ensino-pesquisa-extensão, mas que esquece do necessário quarto pilar, a organização política; ou ainda o professor frustrado com a reprodução dessa cultura, que está insatisfeito (e com justiça) por suas limitadas condições de trabalho, mas que não se organiza coletivamente e desconta seus dramas nos sujeitos que estão em seu cotidiano.

E de repente lá estamos nós falando de horizontalidade, ética e respeito e mobilizando os alunos pelo medo em nossas salas de aula, ou utilizando argumentos moralistas para defender nossas posições, fazendo o uso de discursos rasteiros e sendo condescendentes com os ataques perenes que sofremos no cotidiano universitário. De repente estamos falando de solidariedade, de outro modelo de conhecimento e nos julgando por quem tem mais publicações, por quem “doa seu sangue” pela pesquisa mesmo em “condições adversas”. De repente estamos falando de classes sociais e da precarização do trabalho, da função social da universidade e sem nos organizamos nos nossos sindicatos, fazermos nossa luta, sermos capazes do exercício pedagógico de demonstrar capacidade de reação e proposição diante do desmantelamento da educação superior. De repente estamos falando de educação e reproduzindo o academicismo.

Há desafios enormes dentro e fora dos muros da academia. Há batalhas do plano cotidiano que estão estreitamente ligadas à nossa concepção e para onde queremos ir. É urgente o fortalecimento da organização política por outro modelo de universidade. Nesse sentido, a luta por melhores condições de trabalho e pela nossa valorização na sociedade perpassa por um mesmo caminho. Esse caminho é muito maior do que uma reflexão sobre como somos vistos.

Dessa forma, reivindicar o respeito ao título “professor universitário” é tão importante e necessário quanto reivindicar esse mesmo respeito ao estudante, ao técnico administrativo, assim como o respeito para o mecânico, para o agricultor, etc. Para além de exigirmos e buscarmos o respeito e o conhecimento individual é preciso que nos reconheçamos e nos respeitemos enquanto trabalhadores. Para além de nos embrenharmos na lama das regras da meritocracia e do produtivismo, a fim de termos a excelência que nos exigem aqueles que ditam os modelos de universidade, é necessário que tenhamos força para exigirmos condições para isso e para muito mais.
É preciso cotidianamente lutar e construir uma concepção outra de universidade. Não é o padrão de pesquisa do primeiro mundo que devamos almejar. Ele é muito pequeno e estreito. É o padrão de uma universidade popular, laica, antirracista, anti-homofóbica, anti-machista, pública, estatal, socialmente referenciada na classe trabalhadora e plenamente coerente, com os sujeitos que a constroem pautados numa concepção profunda e de rigorosa vigilância por uma educação para a emancipação humana.


É preciso construir conhecimento e materializar ações que determinem em sua essência que o/a trabalhador/a, que todo/a trabalhador/a, seja plenamente respeitado/a, que isso se construa quebrando os muros da universidade, com todas/os podendo entrar e sair dela, que nós docentes façamos também esses caminhos para as ruas, na luta e em nossa atividade profissional e que quebremos também nossos muros individuais e possamos enfrentar sempre o bichinho da vaidade, o espectro da distância teoria-prática, o abismo entre forma e conteúdo e as vendas nos olhos que escondem os interesses de classe em nossas atitudes e nesse projeto de precarização e privatização das universidades brasileiras, que todos nós sentimos na pele, mas que muitos ousam esconder, seja por estarem assoberbados pela lógica produtivista, seja por pura consciência de assumir um projeto de poder que referenda o fim dos direitos dos trabalhadores.

*MELLO, M. O que é um professor universitário. https://marcoarmello.wordpress.com/2015/02/12/professor/