Não parecia, mas era sim um local
especial, um reino onde atravessaram muitos habitantes que com suas missões e
percalços fizeram dali um canto peculiar. Patos, bodes, cururus, galos,
galinhas, urubus, pavões e cobras encontravam-se nos anais de nobres barões do
solo arado e da poeira constante que encobria tanta dor e magia. O antigo
riacho avermelhado propagava a maldição de uma terra que haveria de ser vivida
em sangue, suor e lágrimas, mas nada disso tirava a felicidade inerente de suas
vielas. As tocas das onças abandonadas davam lugar aos ninhos, repletos de luxo
e alegria, espalhados nos buracos do chão árido ou nos galhos das oiticicas,
enquanto nos grandes e apertados currais milhares de ovelhas se amontoavam e
viviam contentes sem saber por quê. Esse era o maravilhoso Reino das Onças
Pretas!
Diziam os mais antigos que essa terra
havia nascido pelo avesso. “E terra nasce?” – perguntou um desavisado – as coisas por ali não
tinham muita lógica mesmo. Era um pequeno reino, muito, muito pequeno. Na
verdade, só quem acreditava que aquilo ali era um reino eram os próprios
habitantes dele, pois esse reino tão pequenino se encontrava dentro de outros
reinos muito maiores, poderosos e ricos, o que o tornava uma parte quase
insignificante quando olhava-se de fora.
A terra um dia muita seca, agora regada
por bastante água, continuava a não fornecer tantos frutos assim e estranhamente
ainda morriam de sede boa parte dos habitantes. O sol escaldante permanecia tomando
conta do lugar, aliás, o suor era uma das coisas mais democráticas dali. Servos,
plebeus, nobres e reis, todos e todas suavam muito, alguns de tanto trabalhar
naquele calor característico, outros ao cumprirem a função natural dos brindes
diários e darem suas goladas com as mais populares bebidas - atividade para lá
de cansativa - diria muitos dos habitantes do belo lugarejo. Essa era a crença
daqueles fartos e sortudos viventes dos ninhos e também dos sedentos moradores
dos currais. Não era um lugar ruim, nem os seres que ali estavam eram de má
índole, todos só acreditavam cumprir seu papel no roteiro destinado seja lá por
quem.
Era um reino diverso, mas todos tinham
hora, lugar e função específica. A disciplina com a manutenção de tudo era
tida como natural até no caos, na farra, na festa e na disputa que se
avizinhava em tempos como aqueles dentro da Corte. E diferenças nos seres vivos
era algo que não faltava ali, tinha de tudo, no entanto um curioso elemento era
evidente: aquelas que davam nome ao lugar estavam vez mais raras até na memória
dos mais antigos. As temíveis e belas onças pretas de outrora, antes tão
numerosas, caíram em ameaça de extinção, tornaram-se inofensivas ante a
esperteza dos répteis e das aves e seus talentos infindáveis de transformar
todas as outras espécies em ovelhas obedientes, presas em seus currais. O tempo
não era de onças com aquela rapidez e ousadia peculiar, o tempo era de
encantamento com belas plumas ou de curvatura resignada para as
perspicácias daqueles que rastejavam sobre solo fervente. Onças e suas
rebeldias nunca foram tão eficazes na dinâmica da Corte que há muito tempo já
se consolidava na rivalidade de répteis e aves.
Para ser bem específico, apenas uma onça
velha e maltrapilha vivia em meio àquelas aves que não tinham grande capacidade
voo, mas que cultivavam a inveja alheia pela postura elegante e pelo rabo robusto, e
daqueles répteis não venenosos, mas com o talento da asfixia inato dessa espécie, determinando admiração pelo seu bailar rasteiro cheio de capricho.
Sob o céu e sobre a terra, qualquer aparente dissidência na região da Corte Real era apenas um novo adorno de penas aqui, uma troca de pele acolá, fazendo com
que as espécies que orbitavam o lugar lembrassem que o tempo das feras selvagens
deveria ficar apenas no folclore e nas histórias de trancoso.
Havia algo mágico ali que os colocavam
para dentro de uma trama obsessiva. O jogo constante era a dinâmica do reino
que através da ludicidade vivenciava seus dilemas e contradições, ao passo que
decidia sua organização num carnaval ou numa gincana animalesca que ninguém
nunca abriu mão. Reinar ali era brincar dentro da Corte para animar o curral -
"céu para as aves, terra para os répteis e animação para os outros
animais" - assim era ensinado para todos e todas que ali chegavam.
Como já era esperado nas épocas do festejo
sagrado, os últimos dias foram de grande movimentação. Na ala dos plebeus tudo
continuava igual. Aliás, disso não se podia reclamar. Num reino que não gostava
de mudanças os diversos imbróglios no pequeno e aparentemente heterogêneo grupo
da corte nunca alterou de forma significativa a vida daqueles que só suavam nos
pormenores da labuta. Difícil mesmo era a vida na região dos Castelos - “Tantas
dificuldades, confusões, confabulações, tanto fardo político para carregar” –
pensava um - “Nossa, não era à toa a dificuldade de um Rei se segurar no trono”
– outro garantia!
E assim a vida se arrastava pelo caminhar
do sol e da lua por tempos e tempos. Na movimentação alegórica
tradicional lá estavam eles de novo, os de sempre, nos mesmos papéis: A velha
troca de acusações, as mesmas parábolas e anedotas, a tentativa de impressionar
os servos que de longe assistiam o siricutico dos bichos no espetáculo perene,
com ápices naqueles esperados roteiros dos períodos bianuais. Era hora da
agitação! Músicas, números artísticos com animais adestrados, ora aves
vistosas, ora répteis rastejantes faziam da Corte um local diferente do
cotidiano e aquilo sempre deixava o curral ensandecido!
No limiar das projeções daquela exótica
Corte, aquela única onça permanecia no picadeiro real. Estava no meio dos
outros animais, vivia de maneira curiosa, vestida de palhaça, sempre
silenciosa, acuada, era vista ora com desprezo, ora com curiosidade pela fauna
hegemônica dali. Nos dias do cume das farsas tradicionais, eis que ela,
maltrapilha, de roupa colorida, maquiagem no rosto e com um chapéu pra lá de
jocoso resolveu descer do palco e deixar que o imbróglio fosse protagonizado
pelos verdadeiros astros, um espetáculo muito complexo, cômico e dramático ao
mesmo tempo.
Sob o olhar surpreso das ovelhas, a onça
caminhava observando o palco onde os nobre seres da Corte experimentavam seus
papéis tão repetidos, mas que para aquele rebanho parecia tão novo. E era
realmente curioso como avós, pais, filhos, netos e todas as outras gerações de
répteis e aves se engalfinhavam sob as mais diferentes desculpas. “Reforma, contrarreforma,
revolução” de tudo já se havia feito uso, nada mudara, aliás, vez por
outra se modificou os nomes (mas nunca os sobrenomes) das dinastias que
sentavam na cadeira central. Naquela guerra de foice valia de tudo: Rasteiras,
puxões de cabelo, fatos e boatos! Na revolução dos bichos do Reino das Onças
Pretas mudar algo só se fosse para permanecer igual, esse era o lema.
Cansada da posição inerte, a onça
juntou-se às ovelhas do curral e de lá observou as pérfidas querelas, o
rastejar das convicções, os voos rasos dos sonhos egoístas. Constatou como todo
o carnaval de disputa da Corte era um jogo falho para o reino e perspicaz para
os reis, percebeu como o reino que levava seu nome nunca fora seu, primeiro
porque sempre houveram mais ovelhas do que quaisquer outras espécies ali.
Depois porque a sina predatória de quem estava naquela Corte transcendia a cadeia
alimentar e asseverava o que havia de mais intenso no somatório das selvas e
reinos maiores, pois as relações que ali se reproduziam já não tinham muito com
o que se reivindicava natural.
A onça descobriu os motivos de como ela e
suas irmãs foram vencida e como todo aquele rebanho nunca se rebelou. Nesse
momento viu todo o seu corpo desbotar, suas garras caírem, suas presas
encolherem, viu surgir uma pele clara, peluda, grossa e macia: A onça berrou! O
berro que deixou todos ali assustados era a revelação de que aquelas onças do
passado sempre foram na verdade lindas e dóceis ovelhas como outras quaisquer.
Era o momento do diagnóstico real de que
nunca houve sequer uma concreta resistência ao espetáculo da Corte opressora
que reproduzia sua lógica desde sempre. Era essa a essência daquele lugar: O
Reino das Onças Pretas que nunca foi das onças, de onças que nunca foram o que
acharam ser e de reis voadores e rastejantes que se perpetuaram ao longo do
tempo por meio do riso raso e do choro largo, da ilusão daqueles que
acreditaram ser possível reinar e prosperar na mentira e na dor. A onça, agora
ovelha, lembrou de sua roupa de palhaça e, por um instante, esboçou um
tímido e tenso sorriso para sua intuição, para a compreensão do papel crucial
de sua história ali, até então vista como tragédia, agora revelada como
uma farsa vital para a capilarização dos contos e anedotas que fizeram do reino
um lugar magicamente pueril.
Ainda assustada com sua percepção,
percebeu também que aquelas aves e répteis misturavam irracionalidade selvagem
com hipocrisia real para ludibriar as ovelhas em divisões inexistentes,
vilipendiando as motivações daquele cotidiano tão pequeno em festas pobres, em
rezas curtas e em esmolas poucas. Continuando a raciocinar, a antiga onça
concluiu que se ela e suas antepassadas eram também ovelhas e as aves e répteis
da Corte Real eram tão mais iguais que genuinamente divergentes, talvez
pudessem todos ali serem, afinal, da mesma espécie.
Pensando que todas aquelas desigualdades
ali presentes poderiam ter sido uma obra construída ao longo do tempo e, assim,
com uma natureza perecível, percebeu que o Reino das Onças Pretas iria
continuar sua sina até o dia em que as ovelhas também alcançassem o
entendimento de que não mais poderia haver répteis, aves ou onças que pudessem
dominar um rebanho que perde o medo de mudar, de tomar suas rédeas, de
quebrá-las ao meio, de romper as cercas dos currais para demolir o circo falso
e indigno das Cortes Reais e ainda poder não se contentar apenas com a transformação
de um lugarejo, mas sim buscar a vivência na propagação profunda, para além das
raízes das oiticicas, dos oitões das porteiras e das estradas de terras dali,
transformando o riacho maldito em testemunha da luta, no relato vivo e
sangrento de que boas ovelhas berram dissonantes e que o tempo de encantar-se
com o reinado alheio havia de ser superado.
Enquanto constatava e sonhava, o seu
vislumbre foi interrompido por um tumulto espetacular: um desfile barulhento e
massivo. Carroças e carruagens em linhas paralelas riscavam o chão de todo o
reino numa velocidade incrível, nelas, aves e répteis novamente insultavam-se
mutuamente, enquanto as ovelhas vibravam extasiadas ao passo que faziam uma
força descomunal puxando sem cessar os veículos dos seres nobres a fim de que
cada espécie real pudesse vencer a tradicional corrida.
Fitando aquela cena, a antiga onça sabia
que ainda haveria muito tempo para que suas constatações se ratificassem na
massa daqueles currais. Ela bem sabia que até lá sangue, suor e lágrimas banhariam
mais aquele chão do que as águas tão belas e já não mais raras ali, sabia que
muitas corridas e carnavais seriam feitos com os mesmos vencedores e perdedores
de sempre. Aves e répteis tão díspares, tão inimigas entre si, agradeciam
abraçadas nos calabouços dos castelos ao perceberem tal prognóstico: O tempo de
reinados rasos e rasteiros no Reino das Onças Pretas estava garantido entre
guerras e festas por séculos e séculos.
A Corte dizia amém (e o curral também).
"céu para as aves, terra para os
répteis e animação para os outros animais".
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