terça-feira, 11 de março de 2014

Uma Fortaleza de vazio (ou minhas lembranças da Praça Portugal)


A Praça Portugal sempre me deixou curioso. Desde os tempos da pré-adolescência, quando eu saia de Jaguaretama de carona num caminhão em plena madrugada para ir fazer a manutenção de meu aparelho ortodôntico no shopping Aldeota para, logo depois, pegar uma “Topic” de volta para o interior.

As luzes da área nobre da cidade me hipnotizavam, via tudo ali como um não-lugar, era muito diferente de onde eu vivia e eu sempre imaginava que se eu tivesse que morar ali jamais iria aprender a andar naquela cidade.

Anos depois, já morando na região metropolitana de Fortaleza, acabei conhecendo uma galera que frequentava aquela praça. Eu saia do Tabapuá, pegava o ônibus metropolitano, depois o “Circular” e dava a volta na cidade para chegar naquela ilha urbana. Seguramente foi ali que eu conheci a diversidade, o urbano e, entre muitos papos, aprendi a beber.

Tudo aquilo que muita gente via como assustador me provocava. As diferentes tribos urbanas convivendo no mesmo espaço, jovens, a maioria de classe média, outros tantos vindos da periferia, ali, num espaço no meio dos carros, ao lado de um shopping, vivendo suas neuras, suas crises, suas rebeldias despolitizadas, experimentando e lutando contra moinhos de vento.

Passei a transitar por diversos grupos e tentar entendê-los, tinha uma curiosidade antropológica. Queria saber por que eles conviviam de modo muito mais pacífico do que em outras metrópoles e, mesmo assim, como a praça tinham tantos microterritórios. Emos, punks, otakus, gays, lésbicas, skatistas, metaleiros, tinha uma porção de todos.

Por ter muitas amigas lésbicas, muitas delas fugindo da repressão na praça da Gentilândia , os passeios na ilha Praça Portugal se tornaram frequentes para mim e sempre me provocavam:  era algo corriqueiro o desafio de comprar bebida no supermercado do shopping, sob o olhar contrariado da classe média, driblar os seguranças e depois enfrentar a dura batalha de atravessar o maremoto de automóveis até a praça. Os meus papos se desenrolavam, conversávamos até a hora de irmos para o Dragão-do-mar e parte da turma se separar na rua José Avelino, onde alguns iam para o Noise 3D e outros, como eu, para o Hey Ho Rock Bar.

Nunca fui romântico com aquela juventude. Nunca a achei revolucionária. No entanto, aguçava minha curiosidade aquele não-lugar, um símbolo da cidade, território daquilo que a sociedade fingia que não reproduzia, com seus jovens sedentos por socialização, pelo coletivo, por integração, mesmo dentro de um modo de vida individualista, consumista, hedonista como o nosso, correndo sem direção, mas correndo. Filhos da classe média branca e pseudo-culta ali, ora brincando de periferia, ora brincando ser de "londrino". Filhos da periferia furando o bloqueio invisível das barreiras socioeconômicas que imperam na Fortaleza da desigualdade, desfilando pelas avenidas e unindo o lado leste e o lado oeste da cidade numa ilha de concreto.

Sempre refletia de que a dinâmica daquela praça esquisita, com aqueles  seus frequentadores, era um ultraje para a farsa da elite local e sua árvore de natal tradicional. Sempre refletia a fúria dos motoristas ao redor dali, dos olhos tortos e do preconceito não somente por conta das dezenas de erros e excessos comuns do início da juventude, mas principalmente pelo moralismo e puritanismo hipócrita ante principalmente as/os homossexuais.

Refletia também como aquele território poderia ser qualitativamente melhor, quais as estratégias para que se transformasse em um polo cultural daqueles atores que ali vivenciavam suas experiências. Pensava ainda em como poderia se ampliar, incluir, desenvolver novos e ainda mais diferentes frequentadores. Acessibilidade, mobilidade, segurança, lazer, cultura, preservação, transformação, tudo isso passava pela minha cabeça sem jamais deixar de pensar que um dia escolheriam o caminho inverso: a destruição.

É agora, não sob silêncio, há luta e resistência, porém é mais um lugar de Fortaleza que caminha para o passado, mais uma tentativa de transformar essa cidade em um local sem alma. A Praça Portugal, seus frequentadores, suas práticas e linguagens já eram resultados disso, frutos do não-lugar, da não identidade, no entanto, faziam ali uma nova história, um novo significado e uma potencialidade resistente, ainda que pueril.

NA essência da coisa existe o óbvio interesse econômico e a concepção tosca de cidade. Mas não é surpresa que também apareçam os comentários moralistas na defesa do fim da praça. Não é surpresa que esse seja um dos motivos de que muitos queiram que isso aconteça. O medo de ter vomitada em sua cara, ou cuspida no vidro fumê de seu carro, aquela imagem de uma sociedade onde nem tudo é pureza e onde a futilidade não está somente nos discursos das dondocas, mas em seus filhos rebeldes de modo muito mais sincero e, talvez, com possibilidade de se tornar algo bom, tudo isso se junta com a ganância e a cultura do desenvolvimentismo barato, do histórico de destruição e irresponsabilidade tradicional de Fortaleza.

Nas discussões sobre o fim da praça já falaram da mobilidade, da questão ambiental, do caráter histórico, dos trâmites legais. Venho aqui dizer que essa praça tem sim história recente, reveladora, emblemática, real. Nada mais revelador do que dizerem que não há frequentadores na praça, aliás, que não há sequer uma praça. Trata-se da vontade explícita ou sorrateira de jogar para baixo do tapete a vergonha de suas próprias contradições. Trata-se de aumentar o muro invisível da cidade, de buscar maquia-la de Miami (como já tentaram de Paris) sem saber que as cisões sempre cobram, se metamorfoseiam e ressurgem mediadas, complexificadas e bem mais próximas.

Longe do debate moralista e sem entrar nos outros  e fundamentais méritos da questão, tão bem debatidos em outras reflexões, afirmo que tenho sim lembranças daquela praça, "sem suco e sem sanduíche", mas pensando, contemplando e amadurecendo. Essa experiência e os fatos atuais reafirmam: Fortaleza vive da desconstrução, vive do concreto e do asfalto, do shopping e do viaduto, do carro e dos semáforos. Vive principalmente do nada. Querem transformar Fortaleza em nada. Entre tantas estratégias, a do pó e do cimento é a que sempre prevalece.

Fico aqui lamentando e relembrando um vídeo amador (MUITO AMADOR) que fiz alguns anos atrás com jovens da Praça Portugal e da Praça da Cruz Grande, ambos territórios com jovens diferentes e desiguais, viventes e sobreviventes da Fortaleza da contradição, da Fortaleza da segregação, da cidade que promove aprofundamento do vazio, de um forte sem alicerces, uma cidade cada vez menos humana e de pessoas que são ainda mais desumanizadas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário